20 setembro 2004

Interregno

O prestígio de Salazar não deriva da sua obra financeira, tanto porque, sendo essa obra uma obra de especialidade, o público nao tem competência, nem pretende ter competência, para a compreender, como porque o acolhimento clamorosamente favorável, que essa obra teve, denotava já um prestígio anterior. O prestígio de Salazar nasceu vagamente da sugestão do seu prestígio universitário e particular, mas firmou-se junto do público, logo desde as suas primeiras frases como ministro, e as suas primeiras acções como administador, por um fenómeno psíquico simples de compreender.

Todo o prestígio consiste na posse, pelo prestigiado, de qualidades que o prestigiador não tem e se sente incapaz de ter. O povo português é essencialmente descontínuo na vontade e retórico na expressão: não há cousa portuguesa que seja levada àvante com firmeza e persistência; não há texto genuinamente português que não diga em vinte palavras o que se pode dizer em cinco, nem deixe de incoerir [sic] e romantizar a frase. Logo desde o princípio, Salazar marcou, e depois acentuou, uma firmeza de propósito e uma continuidade de execução de um plano; logo desde o princípio falou claro, sóbrio, rígido, sem retórica nem vago. O seu prestígio reside nessa formidável impressão de diferença do vulgo português.

No meio de um povo de incoerentes, de verbosos, de maledicentes por impotência e espirituosos por falta de assunto intelectual, o lente de Coimbra (Santo Deus!, de Coimbra!) marcou como se tivesse caído de uma Inglaterra astral. Depois dos Afonsos Costas, dos Cunhas Leais, de toda a eloquência parlamentar sem ontem nem amanhã na inteligência nem na vontade, a sua simplicidade dura e fria pareceu qualquer cousa de brônzeo e de fundamental. Se o é deveras, e se a sua obra completa o que a intenção formou, são já assuntos de especialidade, e sobre os quais nem o público, que deles nada sabe, nem eu, que sei tanto como o público, poderemos falar com razão ou proveito.

De este prestígio resulta o contraste com Afonso Costa. Quando este apresentou, em 1912(?), o seu superavit, foi recebido à gargalhada pelo público, e os seus próprios partidários tiveram de fazer esforços sobre si mesmos para ter fé na obra, como a tinham no homem. Quando Salazar apresentou o superavit, todo o grande público imediatamente o aceitou. Não foi pois o superavit, comum aos dois que provocou o prestígio: o prestígio de um, o não prestígio de outro, eram anteriores ao espectáculo financeiro.


in Fernando Pessoa, Da República